domingo, 15 de junho de 2008

Resenha- "A Noite"- Elie Wiesel

Resenha
WIESEL, Elie. “A Noite” Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

Livros de memórias e autobiografias que tocam no assunto do Holocausto judaico e o genocídio nazista têm sido uma espécie de fenômeno literário do pós-guerra, na medida em que uma enorme massa de leitores leigos são atraídos pela narrativa histórica graças ao apelo de dramas humanos que vão além do ordinariamente imaginável, e que ainda assim, presume-se, são reais. Isso explica não apenas a popularidade de livros como o diário de Anne Frank, como também a quantidade de falsificações, isto é, autobiografias e memórias forjadas por escritores que não viveram o Holocausto.(Alguns exemplos notáveis são “Misha” de Misha Defonseca e “Fragmentos” de Benjamin Wilkormirski).

“A noite” tem lugar de destaque nessa “literatura do holocausto”. Juntamente com o diário de Anne Frank e “É isto um homem?” de Primo Levi, “A Noite” de Elie Wiesel forma uma espécie de “cânon” em termos de literatura sobre o holocausto. Em comum os três livros têm o fato de terem sido escritos por vítimas dos campos de concentração (Wiesel e Levi sobreviventes, Frank morta em Auschwitz), o que por si só os torna peças únicas de literatura, e o fato de, tanto pelo estilo literário quanto pela honestidade das narrativas, nas quais os autores se expõem completamente a nossos olhos, com suas expectativas, dores e sentimentos. “A noite” ganha mais força se considerarmos que seu autor Elie Wiesel não apenas continua vivo, mas também atuante. Apesar de sua simpatia um tanto parcial pelo Estado de Israel que o levou a algumas decisões questionáveis ou polêmicas (como desculpar ataques israelenses a civis e apoiar a invasão do Iraque), Wiesel têm sido um dos maiores porta-vozes dos direitos humanos e vem denunciando diversos crimes contra a humanidade, discursando e escrevendo continuamente em veículos de grande circulação e mesmo na ONU.

“A noite” impressiona não apenas pelos dados citados acima, mas por sua força narrativa. É um livro curto, compacto, que diz tudo em poucas palavras, crua e brutalmente; tem o impacto de um soco no estômago.. Como o próprio autor afirma, não há palavras para descrever o holocausto (especialmente para quem o viveu diretamente), e Wiesel não perde tempo tentando encontrá-las. Seu livro não explica, justifica ou reflete. Apenas conta. Conta o que seu autor, a duras penas, sobreviveu para contar. Narrado num estilo fluido e quase oral onde a cronologia dos acontecimentos é menos importante que o tempo psicológico do narrador, “A noite” é um romance que lida não com a história, mas com um jovem arrastado pela história. O fio que norteia a narrativa são os sentimentos de Elie Wiesel, então com quinze anos, durante o período em que viveu, com seu pai, num campo de concentração.

“A noite” não tem o rebuscamento emocional a que os filmes de Hollywood nos acostumaram. De algum modo, hoje em dia, nós quase esperamos que dramas se desenrolem ao som de música orquestral e que seres humanos sejam heróis cheios de dignidade ou vítimas estóicas. “A noite”, no entanto é um drama real, e seu autor não faz a mínima questão de embelezar nada. O Holocausto foi feio, desumano, nulificou suas vítimas, e ao mesmo tempo foi banal, corriqueiro e nada heróico; é isso que Wiesel nos diz. As atrocidades desfilam diante dos olhos do narrador (e dos nossos) em sucessão sem que ninguém pense, ou sinta...Apenas acontecem. Tinha que ser assim para que milhões fossem eficientemente eliminados.”Fábrica da morte” não é uma figura de linguagem ao se falar do genocídio nazista, é uma constatação simples. Com o tempo nem mesmo as vítimas sentiam o horror da morte: o processo de sua total destruição às reduziu à nada antes mesmo de colocarem os pés numa câmara de gás.

Como as demais vítimas do Holocausto, Elie Wiesel se viu cair ao nível sobrevivência básica, à necessidade de viver um minuto mais, e ele próprio assume sua desumanização, e a descreve sem qualquer vergonha ou desculpa (afinal, que culpa tiveram as vítimas de qualquer genocídio perpetrado na história do mundo?). Sua mãe e irmã são as primeiras a morrer, na câmara de gás. Em nenhum momento ele as pranteia: deve sobreviver e ajudar o pai a sobreviver. Um resto de humanidade agarra-se à figura do pai, ao amor e ao respeito que ele inspira, e à piedade quando a saúde deste pai começa a declinar, no entanto um instinto de sobrevivência básico, primário, animal mina essa resistência da alma.

“Deus está morto” provavelmente, a melhor definição do que o genocídio significou histórica e humanamente. Enquanto Wiesel vê desmoronarem suas crenças em Deus, nos homens, em si mesmo, também o mundo ocidental viu, entre o regicídio que deu início à Primeira Guerra Mundial e as duas bombas atômicas que encerraram a Segunda Guerra, o fim de um mundo, de crenças e valores que até então pareciam inabaláveis. A destruição de vidas humana em massa, a totalização da guerra, a morte tecnizada e higienizada, foram o parto doloroso do que Eric Hobsbawm chama de “o breve século XX”, um processo cujas conseqüências sentimos ainda hoje.

Bibliografia
ARENDT, Hanna- “Eichmann em Jerusalém- Um relato sobre a banalidade do mal” São Paulo: Diagrama & Texto, 1983.
BAUMAN, Ziegmund- “Modernidade e Holocausto” Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
HOBSBAWM, Eric- “ A era dos extremos-o breve século XX”-São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Um comentário:

Ricardo Castro disse...

Excelente resenha !
Texto claro, erudito e com um espírito analítico inspirado !
Ricardo Castro