domingo, 15 de junho de 2008

Resenha "Feliz Natal" (Merry Christmas/Joyeux Noël)

Resenha:
“Feliz Natal”-(Joyeux Noël/ Merry Christmas”- (2005)
Ficha técnica: Direção: Christian Carion / Roteiro: Christian Carion / Fotografia: Walther Vanden Ende / Edição: Judith Rivière Kawa e Andréa Sedlácková / Produção:Phillipe Boeffard / Música: Phillipe Rombi / Elenco:Diane Kruger, Benno Fürmann, Guillaume Cannet, Gary Lewis, Daniel Brühl.

A chamada trégua de Natal de 1914 é, provavelmente um dos momentos mais conhecidos da Primeira Guerra mundial. A popularidade do evento atesta nossa eterna necessidade de, apesar da guerra, da violência, dos interesses sectários, existe algo inerente ao ser humano, a que vagamente damos os nome de “humanidade”, que o torna essencialmente bom, e que nos faz iguais apesar de tudo. É nessa crença que reside o encanto de “Feliz Natal”.

Criticado por vários especialistas por ser considerado excessivamente “otimista” e “bobo e vago como um belo cartão de Natal pedindo paz na terra”. Temos de admitir que isso não está muito longe da verdade. Visualmente “Feliz Natal” é mesmo um belo cartão de natal. Desde de figurinos e interiores sofisticados até exteriores nevados com trincheiras quase bucólicas povoadas por soldados bem vestidos e surpreendentemente limpos para quem está lutando numa guerra de trincheiras. Os corpos, ratos, amputações e latrinas estão lá, mas apenas mencionados de passagem; o trauma da vida na trincheira, com a falta de higiene, as doenças e as privações são uma nota de rodapé comparada ao enorme, e incrivelmente vago “horror da guerra”. Para completar o cenário temos uma trilha sonora sublime composta de música clássica, canções folclóricas e natalinas, um casal apaixonado, separado pela guerra, comandantes dignos e heróicos, e um padre bem intencionado. Sim, “bobo e otimista” pode parecer uma boa definição.

No entanto os críticos esquecem uma coisa fundamental, que jamais deve ser desconsiderada ao se falar de um filme: a intenção de seus produtores. “Feliz Natal” é um filme antiguerra. Parte do princípio, quase esquecido hoje, que por mais variantes que uma guerra envolva, religiosos, psicológicos, políticos e econômicos e por mais que uma guerra possa parecer necessária ou inevitável, uma guerra é, sempre e sem exceções, ruim. Parece uma idéia demasiado simples, e o é. “Feliz Natal” não faz questão nenhuma de dizer o contrário. Por isso é vago. Por que a guerra é vaga, em suas motivações e conseqüências: ao iniciar uma guerra, governos consideram motivações não por sua justiça ou veracidade, não sabem como será seu desfecho, quantos morrerão, quantos ficarão permanentemente incapacitados, quantos civis serão mortos, feridos ou violentados, e a verdade é que esses dados jamais entram na conta. Aí está o horror da guerra visto em “Feliz Natal”; não é preciso ver o sangue e a morte para saber que a guerra é desumana...já deveríamos saber disso há muito tempo.

A Primeira Guerra mundial marcou o início de um processo maior de desumanização daquilo que já era desumano. A guerra se tornou total. Antes soldados se matavam entre si, agora, instituições e pessoas fora do conflito sofriam diretamente, a tecnologia permitiu que armas matassem mais e com mais eficiência, aviões, navios, tanques e gases venenosos foram usados largamente...Tudo isso envolvendo potências políticas que se batiam por territórios e zonas de influência sobre as quais seus povos (e soldados) nada sabiam ou pelas quais pouco se interessavam. Foi a essência da guerra moderna.

A trégua do Natal de 1914 pode ser considerada uma pequena resistência. Um curto momento no qual esses homens puderam recusar a lógica da guerra moderna e agarrar-se aos valores tradicionais que começavam a desmoronar. Valores como a religião, o respeito aos mortos, e à cultura tradicional. A Guerra pode ter divido a Europa, mas o homem europeu tinha um arcabouço cultural que era comum a todos. É essa identidade européia, que perpassa a narrativa do filme, unindo as personagens. É uma identidade idealizada, claro; um judeu não seria considerado parte dela, por exemplo, e no entanto uma das personagens centrais é um militar judeu(a participação dos judeus na Primeira Guerra foi um dado histórico muito importante, ainda que desacreditada posteriormente pelo IIIº Reich), a escolha da ópera (uma arte aristocrática) como laço musical entre os soldados é outro dado a ser notado, e a presença de uma personagem feminina (devemos salientar que a imagem da mulher é um dos dados fundamentais da construção do nacionalismo, seja sob a forma da personificação da pátria, seja como a figura da esposa e da mãe, ou representação da honra e virtudes nacionais) que dá contornos humanizados e sentimentais a essa identidade (é interessante notar que essa única personagem feminina, uma cantora, durante uma longa seqüência interpreta a “Ave Maria”, veríamos aqui uma possível referência à Virgem Maria, na cultura ocidental o símbolo máximo da mulheres que perderam seus filhos- ou maridos, netos, irmãos etc -para a violência sem sentido?). Mas mesmo essa idealização serve a um propósito, sempre o mesmo, apelar para uma identidade comum, humana, à existência de uma humanidade básica em todos nós. Vista desse modo a “identidade européia” mostrada pelo filme pode ser considerada uma simples metáfora para uma “identidade humana” maior, e a guerra de “Feliz Natal” pode ser, no fim das contas, apenas um símbolo para todas as guerras da modernidade.

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